Falar sobre a homossexualidade no Império Otomano é tão complicado quanto simples. A primeira coisa de que devemos nos lembrar é que as leis Tanzimat não eram sempre feitas para criar novas normas sociais ou padrões. Frequentemente, estavam apenas codificando oficialmente as coisas que já estavam em prática por um tempo, como parte de um esforço de modernização para, essencialmente, “ter todas as leis nos livros”. Essa é a resposta simples! Esta lei tinha mais a ver com a codificação do comportamento homossexual que era bem comum na elite das sociedades muçulmanas da época.
Esta lei, especificamente, estava solidificando o que era uma prática comum da elite em muitas sociedades muçulmanas. Parece maluquice se considerarmos a reputação mundial do mundo islâmico quanto à homossexualidade hoje, mas o mundo islâmico tem uma história muito, muito longa com o que se poderia chamar de homonormatividade. Usar este termo em particular é nebuloso, porque historiadores que focam nos gêneros argumentam que a dicotomia rígida entre homossexual e heterossexual de hoje, de sermos “gays” ou “héteros”, sem algo no meio, é uma construção que emana da metade do século XIX, e portanto, usar qualquer um dos termos de hoje é complicado.
Na cultura clássica do persianato islâmico, a beleza era agênera. As palavras que as pessoas usavam para descrever a beleza poderiam ser igualmente aplicadas às mulheres ou homens jovens e sem barba. Estou usando o termo persianato para me referir a sociedades islâmicas que eram fortemente infleunciadas pelo idioma, sociedade e cultura persas. Por conta da forte influência persa desde o Califado Abbasid em diante, os grandes impérios islâmicos modernos no início (Otomano, Safavid/Qajar, Mughals) compartilhavam uma cultura em comum, semelhante à cultura do latinato que uniu a Europa Ocidental em seu início.
Em culturas do persianato, todas elas muçulmanas, era muito comum homens mais velhos buscarem homens mais jovens sem barba romanticamente. Depois que um adolescente começava a mostrar traços da barba crescendo (seu “kahtt”, ou contorno), ele geralmente passava à categoria de “homem mais velho”, parava de ser buscado e frequentemente tornava-se um interessado. Tem uma quantidade enorme de poesia sobre isso, normalmente ligada profundamente à filosofia Sufi — encontrar a verdadeira beleza da impermanência no mundo, a tristeza quanto ao que a idade e o tempo fazem conosco, e ao quão diferentes Allah e seu amor são comparados à nossa existência transiente. Lembremos, o período entre o início da puberdade de um homem e o surgimento do seu khatt é extremamente limitado. O nome persa para este jovem era “amrad”, que ocupava uma espécie de terceiro gênero. Na elite da sociedade persa, depois que você passava a cumprir suas tarefas reprodutivas em um casamento heterossexual, parece que as pessoas não ligavam muito para o que você fazia com sua vida sexual particular. Você podia ter várias concubinas e esposas, a sociedade não ligava. Você podia passar o tempo todo correndo atrás de amrads e as pessoas também não ligavam. Há uma ótima lista no livro fantástico de Najmabadi sobre esse assunto que fala sobre cronistas Safavid oficiais listando as tendências sexuais de vários Shahs completamente destacados de julgamentos. Ao passo que a prática na elite fosse bem clara, o que acontecia nas camadas mais baixas da sociedade é algo um pouco mais impreciso. Há evidências suficientes de que a busca por amrads era bem aceitável na sociedade comum também.
E antes de você achar que isso seja um artefato cultural da cultura persa ou grega pré-islâmica (lembremos, os mulçumanos estavam lendo Platão assim como nós — se essa descrição de casais de homens mais velhos e mais novos parece familiar para você no Simpósio, não é coincidência!), ou de ter a ver com o fato de que os Sufis estavam normalizando o amor homossexual como parte de uma compreensão simbólica da triste impermanência neste mundo contra a infinitude perfeita de Allah, eles também encontravam apoio para isso no Alcorão. Você provavelmente está familiarizado(a) com a descrição islâmica do paraíso — a cada novo ataque terrorista, algum cara islamofóbico no Reddit faz uma piada sobre as 72 virgens. Bem, no Alcorão, a palavra usada é “hur”, uma eterna beleza jovem e feminina. As hur têm um espelho, “ghilman”, que são eternos e belos jovens HOMENS. O papel sexual do ghilman não fica explícito no Alcorão, mas as descrições paralelas e serviços listados para as hur e os ghilman certamente fizeram alguns muçulmanos discutirem. Alinhando suas práticas culturais a citações no Alcorão, muitos muçulmanos persas tinham certeza de que haveriam garotas E amrads esperando por eles no paraíso.
A sociedade otomana, muito influenciada pela cultura do persianato, tinha muitas das mesmas práticas culturais evidentes, e a poesia otomana é repleta de referências a jovens, amados rapazes. O que mudou para chegarmos no mundo de hoje? Esta resposta (talvez isso não te surpreenda) é complicada. Há um bocado de argumentos a respeito disso, mas o consenso acadêmico é: europeus. Os muçulmanos do século XIX foram levados a ser MUITO autoconscientes e cientes de tudo que faziam e que os europeus considerassem “atrasado”. A homossexualidade nos círculos da elite muçulmana era algo que os europeus definitivamente consideravam atrasado. Ao que os europeus penetraram no mundo muçulmano, cada vez mais profundamente, seja de forma econômica (no Império Otomano) ou com um colonialismo completo (Índia, Egito), eles constantemente comentavam e tentavam suprimir estas práticas. A elite muçulmana, se esforçando muito para modernizar seus impérios e sociedades para evitar a colonização, tenderam a adotar as vontades européias junto à tecnologia e às instituições. Neste cenário, a descriminalização da homossexualidade pode ser lida como uma resistência à hegemonia europeia. Os otomanos estavam tentando preservar uma prática cultural antiga enquanto se modernizavam em outras áreas. A prática foi extinta de forma irrecuperável, no entanto, ao passo que mais e mais práticas culturais e atitudes europeias eram adotadas. Enquanto a prática era extinta lentamente em terras anteriormente otomanas, o fundamentalismo islâmico moderno veio em seguida, com sua reinterpretação radical do Islã e de questões como a homossexualidade, substituindo muito do que tem sido descrito aqui. E então, depois de cerca de cem anos pressionando os otomanos e persas a segurarem a onda em suas práticas homossexuais, os europeus decidiram que a homossexualidade era aceitável em algum momento depois da metade dos anos 90. E em uma cruel ironia histórica, agora pressionam os muçulmanos por serem anti-homossexualidade, tudo depois de seus bisavós terem passado um século extinguindo uma sociedade fervorosamente homonormativa.
O livro “Mulheres de bigode e homens sem barba” (tradução livre, não há versão em português — link), de Najmabadi, é a melhor publicação moderna sobre o assunto Você encontrará uma bibliografia extensa nele se tiver curiosidade! E faça um favor a si mesmo(a), leia um pouco da poesia de Hafiz e Saadi (ambos de Shiraz): “beloveds!”
(Tradução de uma resposta em uma publicação no Reddit: What lead to the Ottoman Empire decriminalizing homosexuality in 1858? Was there a lot of opposition and controversy around this?)